20071030

Leis e prioridades a valer

A ministra da Educação veio estranhar que o PGR considere a violência escolar uma prioridade, e que o PGR deve ter «crimes mais graves para investigar», até porque «as Escolas são sítios seguros!».
É claro que a Lei de Prioridades de Política Criminal (Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto) saiu em Férias, e a senhora ministra ainda não a deve ter visto (até porque o Simplex, às vezes, desmaterializa em excesso as coisas legais, não é?)

Esta Lei, n.º 51/2007, que, entre outras coisas, diz isto:

(...)
Prioridades da política criminal
Artigo 3.º
Crimes de prevenção prioritária

Tendo em conta a dignidade dos bens jurídicos tutelados
e a necessidade de proteger as potenciais vítimas, são
considerados crimes de prevenção prioritária para efeitos
da presente lei:
a) A ofensa à integridade física contra professores, em
exercício de funções ou por causa delas, e outros membros
da comunidade escolar
, a ofensa à integridade física contra
médicos e outros profissionais de saúde, em exercício
de funções ou por causa delas, a participação em rixa, a
violência doméstica, os maus tratos, a infracção de regras
de segurança, o tráfico de pessoas e os crimes contra a
liberdade e autodeterminação sexual de menores, no âmbito
dos crimes contra as pessoas;
(Negrito nosso; não carece de qualquer rectificação).
O Procurador-Geral da República é que há-de ter pensado que a Lei «era para valer»...

Será escutado?

É hoje que o PGR irá ao Parlamento prestar esclarecimentos sobre alegadas escutas (telefónicas) que podem ter-lhe sido feitas.
Entretanto, o "sentido construtivo" das suas palavras (no dizer do ministro Alberto Costa) terá encontrado eco no discurso do Director Nacional da PJ, Alípio Ribeiro, que declarou, peremptório, «Escutas ilegais, não há!» (é que, se as houvesse, não seriam só "ilegais", pois seriam crime).
Começa a compreender-se, assim, o afã de alguns governantes - mormente o ministro Alberto Costa - em defender a possibilidade de escutas telefónicas pelos Serviços de Informação.
Enfim, esperemos que o PGR, hoje, seja escutado.
Legalmente, claro está.

A fome, o cão e a Arte - Cap. II

Afinal, a notícia da morte do cão foi «um pouco exagerada».
Os donos da galeria afirmam que alimentaram o animal e que o mesmo fugiu.
Ninguém parece ter visto o seu cadáver. O artista terá dito que tudo não passou de uma encenação (happening) no sentido de avaliar o tipo de reacção das pessoas perante a iminência da morte de um animal à fome.

A iniciativa do protesto tem, por isso, contornos paradoxais. Sem dúvida que se deve denunciar um acto hediondo (a sujeição de um animal a maus tratos será um deles?). Sem dúvida que se deve condenar a gratuitidade dos maus tratos a animais, mesmo com fins artísticos.
Mas, os contestatários esquecem que, considerando o «direito dos animais» um direito absolutizante, ninguém se antecipou nem tentou impedir a provável consequência do acto (a morte do cão).

Todo este episódio não passou de um monumental exercício de hipocrisia de apaziguamento das (más) consciências.

20071029

A fome, o cão e a Arte


Já corre na internet uma «corrente» para «abaixo assinar» uma petição contra um artista latino-americano que deixou um cão morrer à fome, enquanto happening de uma exibição sua.
O artista deve estar satisfeito, embora com sentimentos contraditórios.
Por um lado, há-de ficar apreensivo com os mimos com que alguns já o brindaram e com eventuais consequências institucionais que o seu gesto possa vir a ter.
Por outro lado, alcançou integralmente - se é que não superou mesmo - o seu objectivo: indignar uma multidão de pessoas com o facto de um cão ser exposto à morte por inanição.

Alguém se lembra de fazer «correntes» de indignação pelas centenas de crianças asiáticas e africanas que diariamente morrem por falta de alimentos ou de cuidados básicos de saúde?

20071028

Hermitage ou o brilho "pós bolchevique" dos Czares.

Julgo, como muitos portugueses, que a despesa com a instalação da colecção do Hermitage é um perfeito desperdício financeiro, em tempo de obsessão com o cumprimento dos critérios do «défice orçamental».
Quanto mais não fosse, são verbas que seriam muito melhor aplicadas na promoção de novos valores artísticos nacionais.
Mas, o problema é que esse inesperado «novo riquismo cultural» esconde outra realidade. O espavento apologético com que Putin foi recebido em Portugal é revelador de uma subserviência que se julgava ultrapassada e de um deslumbramento bacoco.
Contrasta, aliás, de maneira flagrante com a forma vergonhosa como, sem qualquer subterfúgio diplomático, o ministro dos Negócios Estrangeiros recusou receber oficialmente o Dalai Lama (por causa das supostas ou reais ameaças chinesas, os dirigentes portugueses manifestaram uma das mais despudoradas faltas de elevação diplomática, a roçar o mesquinho alinhamento com uma potência mundial cujo respeito pelos mais elementares direitos humanos é o que se sabe, o que nos deveria envergonhar a todos).
Afinal, a baixa real politik da capitulação aos interesses dos poderosos ainda fala muito alto.
A agenda dos Direitos Humanos nunca foi o forte deste governo.

20071027

Regresso a Moçambique - (nota IV)

Madre Teresa (de Calcutá)

Ao de leve, falei já do drama nacional de Moçambique que consiste na percentagem da população afectada pelo HIV/Sida (cerca de 16% num total, de acordo com as projecções do novo Censo em curso, de 20 milhões de habitantes).

Esse problema - verdadeiramente um pesadelo estrutural, dada a magnitude das implicações que poderão advir para todo um sistema social - pode vir a comprometer o sucesso de toda a esperança que se deposita (fundadamente) nas jovens gerações de moçambicanos.

É certo que as autoridades parecem estar alertadas para o problema e suas implicações (ao contrário do que se passou até há bem pouco tempo na vizinha República da África do Sul). No entanto, por um lado, não sei se estarão a cumprir os objectivos - e a ser suficientes - as medidas de prevenção da pandemia.

Expectativas na adopção de outros comportamentos sexuais ou na «descoberta» da vacina (recentemente foi anunciada a descoberta de um processo de interrupção da reprodução do vírus) do HIV/Sida, poderão não ser tempestivos ou nem permitir evitar uma hecatombe social.

Na verdade, as consequências da existência de inúmeros órfãos - alguns acolhidos em instituições e ONG´s, outros entregues à sua sorte -, a erosão dos laços de solidariedade familiar e social que tal acarreta, os enormes custos económicos e sociais que provoca a pandemia, faz recear o pior.

O sistema de Ensino público tem uma baixa de cerca de 1000 professores por ano devido à infecção, o que não permite repor a rácio de professor/alunos, complicando de forma grave a gestão de todo o sistema.



Neste quadro, instituições como a das Irmãs de Madre Teresa de Calcutá, em pleno coração do problema (a cerca de 50 metros da lixeira de Maputo), que acolhe crianças órfãs, desfavorecidas e doentes, são um bálsamo escasso num mar de atribulações.

No caminho para as instalações da Obra, no meio de um dos bairros da periferia de Maputo, encontra-se um "placard" oficial (não se sabe bem de que autoridade!), com os dizeres «15 anos a lutar contra a pobreza extrema», o que não deixa de ser uma enorme ironia, se se quiser confrontar o resultado dessa «luta» com a de um grupo de religiosas e outros colaboradores.

O que quer que se diga da Obra dessas Irmãs (seis delas indianas, quando a visitei), acompanhadas por voluntários e outras dedicadas pessoas que ali trabalham, é muito pouco. A sua inestimável Obra é merecedora de uma referência de altruísmo inexcedível, de uma abnegação ímpar, num contexto de adversidades sem fim.

«Ilha de Moçambique»

20071026

Crónica de estrebaria

«Pinto Monteiro (...). Com coragem e determinação decidiu que tinha de limpar os estábulos».

José Miguel Júdice, Público de 26/10/2007.

Aquilo que era suposto ser uma crónica laudatória da entrevista do PGR, Pinto Monteiro ao Sol, e da sua actuação, parece-me ser, afinal, uma traiçoeira aleivosia (Pinto Monteiro foi, afinal, escolhido para PGR pelas suas qualidades de "moço de estrebaria"?).

O que Júdice aplaude é, afinal, o «Quero, posso e mando.», o «Manda quem pode, obedece quem deve.», o que só vem confirmar o seu posicionamento político passado e a natureza das suas ambições.
Os «estábulos» que o PGR alegadamente «tinha que limpar» é uma instituição que se julga necessária e que deve servir a Comunidade - de que o cronista, aliás, não se pode arvorar em representante (e, já agora, que devia merecer algum respeito por parte do cronista).
É uma instituição - o Ministério Público - com uma História, com um Estatuto, com pessoas isentas, trabalhadoras e sérias, o que o cronista desenvoltamente ignora. Que não deve servir concretos interesses particulares, mas sim interesses legalmente definidos e desempenhar as funções socialmente tão relevantes que lhe estão cometidas.

Se devem ser reequacionados quais os interesses que o Ministério Público deve continuar a representar e defender, bem como os termos em que tais funções devem ser prosseguidas, ou se há alterações a introduzir ao modelo actual, é matéria que deve ser posta em debate político público, e não ficar reservada para conversações de bastidor, subtraídas à discussão democrática.
Em suma, não ser podem sinuosos interesses negociais ou de outro tipo - ainda que estruturais -, e muito menos critérios de uma muito mitificada «eficiência» a produzir o esvaziamento do complexo funcional actualmente atribuído ao Ministério Público.
O que está "em cima da mesa" é a possibilidade de «confinamento» do Ministério Público ao exercício da acção penal.
Com a agravante de o exercício da acção penal se fazer num contexto cada vez mais difícil, complexo e porventura de duvidosa eficácia nos resultados, ante os efeitos de uma nefasta e «arrepiante» (no dizer de Costa Andrade) reforma processual penal. E sem nenhuma vantagem - pelo contrário - para os interesses dos cidadãos, que cada vez mais devem compreender não serem os operadores judiciários os responsáveis pelo disfuncionamento do sistema.

Em que ficamos, dr. Júdice, é a crónica ou o seu objecto que estão ao nível da estrebaria?

20071025

Regresso a Moçambique - (nota III)

Estação de Maputo (onde se situa o «Campfumo»)


Os ambientes lúdicos e de diversão nocturna que se apresentam em Maputo são, regra geral, decentes e recomendáveis. Há muitos bares e locais de encontro, de convívio (e de engate).

Não seria, no entanto, justo que não salientasse um dos locais que é um dos meus preferidos, por tão improvável na sua localização e no seu projecto: o bar de Jazz Campfumo. Situa-se dentro da Estação dos Caminhos de Ferro de Moçambique, em Maputo, e um dos seus dinamizadores foi Ricardo Rangel, o famoso fotógrafo e fotojornalista moçambicano. Isso mesmo.

Esse bar vem referido no livro do José Eduardo Agualusa «As mulheres de meu pai» como "Chez Rangel", portanto sem actualização no tocante à titularidade (no presente é explorado apenas pelo Nuno Quadros, após o afastamento de Ricardo Rangel) e ao nome.

Trata-se de um bar que funciona (e muito bem) às sextas e sábados à noite e em vésperas de feriados, onde predominantemente se ouve Jazz (bom Jazz) ao vivo, sobretudo executado por músicos moçambicanos e sul-africanos.

No Campfumo podem encontrar-se alguns nomes de referência do meio cultural de Maputo, como João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Nelson Saúte, entre outros, para além de visitantes ilustres e curiosos.
E, acreditem, é um lugar de muita magia, pela improbabilidade de nos sentarmos a beber e a ouvir Jazz - tocado com mestria e sentimento -, numa plataforma do cais ferroviário do que outrora foi o terminal de uma ambiciosa linha de caminho de ferro. O edifício é um dos mais belos exemplares de arquitectura colonial, encimado pela cúpula de ferro forjado projectada por Gustave Eiffel (esse mesmo, o da torre de seu nome e da ponte Maria Pia).
As noites de Maputo bem podem começar ali e terminar não se sabe muito bem onde. Provavelmente no «Coconuts», no caminho para a Costa do Sol. O lounge «Coconuts» é uma mega-discoteca (com várias pistas de dança) onde actuam grupos musicais da moda e outros artistas (Rui Veloso já actuou ali). Este é um lugar que mereceria destaque em qualquer grande capital europeia, pelo cosmopolitismo dos seus frequentadores.
Actualmente, florescem outros locais, como o «Havana», na Avenida Mao-Tse-Tung, local de boa frequência, dir-se-ia uma clientela BCBG, que desfila com intenção (e pretensão) de impressionar e "épater le bourgeois" (aliás, à entrada paga-se um «consumo mínimo» que pode ser parcialmente devolvido, se não se consumir a totalidade...).
Maputo by nigth, poderia bem ser o título desta crónica. Não o foi, porque a noite em Maputo tem sortilégios que um tal título se tornaria redutor. A noite de Maputo é longa, e pode ser prolongada. Depende da vontade de cada um.

20071021

Regresso a Moçambique - (nota II).

Moçambique é - felizmente - um País multicultural. Um País onde se respira liberdade religiosa, liberdade de criação artística e de iniciativa cultural. A imprensa, apesar de não haver censura explicita, ainda é, nalguma medida, pouco afrontosa para com o poder instituído (sequelas do trauma Carlos Cardoso?), havendo jornais menos «alinhados», mas, ainda assim, bastante «respeitadores» da ordem estabelecida.

Uma das «inovações» que sinalizam os tempos, é mesmo a pluralidade de cultos religiosos. Desde a proliferação das «novas Igrejas cristãs» até à intensificação dos credos tradicionais do País.
A missa de domingo de manhã na Catedral de Maputo é um momento alto e enriquecedor de fecundo cruzamento entre elementos de coordenadas culturais e étnicas distintas, que foi alcançado pela vontade dos crentes que a frequentam e fazem dele um acto de verdadeira criação cultural.

Catedral de Maputo.

O Islão em Moçambique - não o devemos esquecer nunca - é anterior ao Cristianismo. Aquando da chegada de Vasco da Gama, o Islão influenciava já vastas áreas do litoral moçambicano desde o extremo Norte até Inhambane (a «Terra da Boa Gente», como lhe terá chamado o navegador português).


Estátua (apeada) de Vasco da Gama, em Inhambane.

O Islão africano, e particularmente, o que era observado em Moçambique, contava - durante o período de domínio português - com alguma tolerância das autoridades e havia até movimentos ecuménicos de coexistência pacífica entre os principais credos praticados: o Islão, o Cristianismo e o Hinduísmo.

A situação, em abstracto, não terá mudado. O que evoluiu foi o esforço de propagação (mesmo algum proselitismo) do Islão, com o auxílio dos Países árabes. Daí que se tenham visto surgir novas mesquitas e novas madrassas, sinal de recentes e significativas conversões. Em detrimento, é certo, de uma perda de (capacidade) de influência da Igreja Católica, compreensivelmente mais preocupada com a rivalidade dos novos cultos ditos cristãos.


Mesquita de Inhambane

O chamamento dos Mu´edhin na madrugada de Maputo constitui, assim, um inequívoco sinal de multiculturalismo e pluralidade de cultos.

Mesquita de Maputo.

Esta atmosfera de pluralismo cultural e religioso - em que são empreendidas lógicas de sobrevivência e de concorrência - só pode ter efeitos positivos e deve ser estimulada. Desde que se continuem a respeitar os mesmos valores comuns de paz, respeito e convivência pacífica.

O PGR sob escuta?

O PGR Pinto Monteiro revelou, na entrevista que deu à revista Tabu do Sol de 20/10/2007, que o seu telemóvel deve estar sob escuta, porque... «às vezes faz uns barulhos esquisitos».

Mas disse mais, disse esta coisa espantosa: «Como é que vou lidar com isto? Não sei. Como vou controlar isto? Não sei».

A eventualidade não é inédita: em tempos, Cunha Rodrigues teve no gabinete um microfone instalado clandestinamente.


Das duas uma: ou o PGR limitou-se a levantar uma infundada suspeita (e não devia ter dito o que disse) ou suspeita fundadamente desse facto, o que é de uma enorme gravidade.

A grande questão é saber quem tem interesse em «escutar» o Procurador-Geral da República. E como? E porquê?

E, se o PGR não sabe «lidar» com isso, nem sabe como «controlar» isso, quem saberá?

20071020

O saque pós-colonial

A voracidade chinesa em África não tem contemplações nem se comove com pruridos de direitos humanos nem com considerações ecológicas; têm direito ao «seu desenvolvimento económico» e não têm de dar mais satisfações a ninguém.

Esta ocorrência é mais um bom/mau (péssimo) exemplo do que se diz.

O problema é que o corte e a exportação selvagens (e proibidas) de madeiras de Moçambique conta com cumplicidades (ou algo mais) de dirigentes e responsáveis daquele País, que viabiliza essas práticas.

Caetano Veloso e Gilberto Gil - «HAITI»

Regresso a Moçambique (nota I).

«O exílio é o regresso a um lugar onde não se teve infância».


A sustentabilidade de um regresso é sempre uma coisa sensível. Quando se trata do regresso à terra natal, onde se viveram tempos de infância e adolescência, a sensibilidade aumenta de forma vertiginosa.
De uma vaga ou clara ideia do que fica, não se pode esperar reencontrar o que se deixou, sobretudo como se deixou. E a sustentabilidade dos registos da memória das pessoas, dos lugares, das paisagens, dos cheiros, é algo que varia. Reencontra-se o cheiro da terra, dos cozinhados, reencontra-se aquela árvore, aquele caminho, aquele edifício, alguns quase como eram, outros modificados, alterados por gestos de outros gostos, de outros sentimentos.

Estava avisado para evitar o saudosismo de um regresso melancólico a um ambiente perdido para sempre.
Moçambique está - passe o pleonasmo ou a desmentível ironia - um país "mais africano", ou mais «africanizado». Para o pior e para o melhor. Após vinte anos de «socialismo científico» e de dez anos de guerra civil altamente destrutiva, o país poderia estar pior. As infra-estruturas urbanísticas anteriores à independência permitiram aguentar uma pressão demográfica nas maiores cidades que, de outra forma, teria tornada muito mais críticas as condições de vida das populações, ao que acresce os esforços de reconstrução e reabilitação do património edificado e degradado durante a guerra.

De facto, após os acordos de Roma, parecia que toda a gente estava apostada na reconciliação, na reconstrução. Mas, passado esse ímpeto genuíno, de vontade de mudar e de desenvolver o País, parece que as pessoas se rendem aos esquemas do dinheiro fácil, do «desenrascar a vida» mais preocupante e da forma mais generalizada (ou institucionalizada), que a ausência de exemplos vindos «de cima» torna tolerável para com todo um modo de viver, que infelizmente se vai impondo como regra dos «novos tempos».
Os moçambicanos falam, hoje, entre si - mais do que no tempo colonial -, o português. Mas fazem-no já com uma indisfarçada e despreocupada «norma moçambicana», quer na sintaxe, quer na fonética, quer nos neologismos. Ficou-me, aliás, a ideia de alguns moçambicanos intuírem que o português (a língua portuguesa) foi (mais um?) legado colonial dispensável, dado estarem cercados de países anglófonos, e que, nesse contexto e na actualidade, o inglês seria incomparavelmente mais utilitário.

De todo o modo, Moçambique continua a ser um espaço magnânimo, pelas gentes, pelo território, pelo clima, pelas cores e pelo potencial de recursos humanos e naturais.

20071018

Jumah

Jumah, foste o meu primeiro Mestre.
Sábio e senhor de uma imprevista elegância.
Muçulmano, macua e observador de gerações de homens de todos os continentes que demandavam a cidadezinha da Companhia dos Algodões e da Nossa Senhora de Fátima.
Cofió de crochet cobrindo a digna cabeça ossuda, debruada com a rala barba branca.
Sobreviveras, provavelmente, a uma novela colonial em que cipaios de bivaque turco carmim atormentavam os conterrâneos, em troca de infames favores dos poderosos.

Jumah só lia e escrevia árabe.
Recitava os Hadiths e a Sunna, como ladaínha dos crentes, após o almoço, nunca curando de aprender a escrever e a ler a língua do poder (soberano desprezo pela utilitária capacidade que poderia ter-lhe aberto outras vi(d)as).
Mas Jumah conformava-se com existir e «ensinar a vida» a todos quantos quisessem ouvi-lo, negros, novos, velhos, e eu - talvez o único miúdo branco que o escutava, fascinado - sentado nas traseiras da Zuid Afrikaans, fumando havanas, uns atrás de outros.

Lá estavas sempre, com o Roque e o Ismaíl Sabour, meu mainato, e, por vezes, aparecia o teu sobrinho, o grande e ocupado artista Scha' al.
Tinhas-te auto-contaminado com o apelido dos teus amos, que era, afinal, o meu.

Não. Não me contaste as Mil e Uma Noites, nem me explicaste álgebra. Não sabias os graus dos adjectivos nem ouviras falar do modelo coperniciano.
Mas, Jumah, ensinaste-me mais que todas as escolas me poderiam ter ensinado.
Aprendi contigo que Sócrates, afinal, pode estar acocorado ao descer da escada, no terreiro do armazém.
Aprendi contigo a perfídia dos bons e a fealdade dos belos. Que a totalidade da Fé não está nos templos.
Aprendi ainda o cantar dos pássaros, o sabor frutos da nossa terra, as histórias de homens em estradas poeirentas e carregando azagaias de caça.
Aprendi as cores do Mossuril e da Cabaceira, a brisa nos palmares.
Aprendi o horizonte das ideias grandes dos homens e soube qual o sítio em que queria muito ser árvore, frente à fortaleza da Ilha, para ver os barcos dos pescadores, de velas brancas a reflectir na transparência verde do nosso Índico, toda a encruzilhada das nossas crenças e raças.

Como Muh´na que eras, todos te respeitavam, mesmos os patrões burgessos e frívolos.
E como lamento não te ter escutado mais, e mais, e me ter embriagado com tudo o que não me ensinaste. Que pena não ter aprendido, como querias, a escrita do teu Profeta.

Ah, Jumah, se eu pudesse hoje abraçar-te o corpo austero e escasso, meu Mestre e Amigo!
Sabes? Tornaste-te lenda em mim.
Será isto a imortalidade?

20071017

África - U.E.

A África Austral é - e tem consciência disso - a reserva de recursos naturais do futuro.
Porém, o cenário com que se defronta na actualidade não é brilhante. O gosto das vantagens do poder e da corrupção faz efectivamente esquecer as tentações da guerra e da destruição. Respira-se um ambiente de desanuviamento no que respeita à eventualidade de conflitos armados (civis ou internacionais).
O HIV/Sida e a corrupção generalizada são, no entanto, as duas principais ameaças a um desejável processo de desenvolvimento humano, social e económico de toda a região.
Um outro motivo de receio é a forma de implantação de interesses chineses na zona, através da delapidação e esgotamento não sustentado dos recursos naturais (corte e exportação de madeiras, extracção de gás natural e de petróleo, pedras preciosas, aproveitamento de facilidades comerciais), a que acrescerá, porventura, a tendência de estabelecimento de muitos nacionais chineses em substituição das populações que forem sendo dizimadas pelo HIV/Sida (em Moçambique e África do Sul , cerca de 16% da população está infectada; o impacto da mortalidade de professores provocada pela pandemia HIV em Moçambique - cerca de mil professores mortos por ano - faz recear o colapso do sistema de Ensino).
Os sistemas políticos (com algumas excepções: Zâmbia, Namíbia, África do Sul) não atingiram ainda um nível de maturidade democrática.
Duvido que a maioria dos seus dirigentes tenha assumido - e muito menos interiorizado - uma verdadeira consciência de responsabilidade democrática.

Daí que a famigerada cimeira U.E. - África venha sendo, em grande medida, uma "mistificação". Em rigor, os dirigentes africanos, hesitantes no fortalecimento dos vínculos com os antigos colonizadores (europeus), dão ostensivamente preferência aos parceiros chineses nas sua relações comerciais e económicas.
Por isso, fazer ponto de honra no "problema Mugabe" é errar a perspectiva.
Mugabe tem a cumplicidade (mais ou menos envergonhada, mais ou menos assumida), dos seus "companheiros" dirigentes dos países vizinhos, apesar de uma crescente consciência crítica desfavorável de vastos sectores da opinião pública desses países (começam a sentir-se mais próximos das consequências das desastrosas políticas do regime do Zimbabwe, em que um terço da população está emigrada nos países limítrofes, com todas as inerentes implicações).
E, numa jogada magistral, já desafiou - como é seu timbre - os anfitriões europeus, que, desajeitadamente, terão, agora, que lidar com o dilema de desagradar ao ditador africano (e, reflexamente, aos seus comparsas) ou aos parceiros europeus mais "intransigentemente" apostados na defesa de pontos de vista da coerência de princípios e valores do humanismo e da democracia.
Com efeito, acho que Mugabe deve poder vir à cimeira. Não para receber "palmadinhas nas costas", mas para ouvir todos as críticas - se é que há coragem (haverá?) - que os europeus entendam dever fazer-lhe, sem receios e sem tibiezas, no local e momento próprios.

20071016

É a celeridade processual em acção...

«Os penalistas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra receberam um telefonema de uma funcionária da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República comunicando-lhes que tinham quatro dias para se pronunciar sobre a revisão dos Códigos Penal e do Processo Penal.
A revelação foi feita ontem pelo professor catedrático Manuel da Costa Andrade, durante uma sessão promovido pelo Tribunal da Relação do Porto, a que assistiram dezenas e dezenas de magistrados judiciais e do Ministério Público, e foi presidida pelo presidente daquele tribunal superior, desembargador Gonçalo Silvano.Costa Andrade revelou o episódio quando um juiz lhe perguntou por que não foram envolvidos na revisão daqueles dois diplomas alguns dos mais conhecidos penalistas portugueses
».

Do Público de 16/10/2007