20091210

Enriquecimento ilícito: dizes tu, digo eu.

Era bom que a clivagem entre o PS e os partidos da oposição sobre enriquecimento ilícito fosse uma questão terminológica - entre "enriquecimento ilícito" e "enriquecimento injustificado".
Não é. É uma questão de concepção.
É certo que na base da proposta dos partidos da oposição está uma ideia um pouco voluntarista, de facilidade técnica, decorrente de um pensamento inconsequente e pouco reflectido sobre a criminalização do "enriquecimento inexplicado".
O PS, por seu lado, está cativo de preconceitos (pretextos?) de constitucionalidade a outrance, procurando uma solução que se desvie de um raciocínio efectivamente redundante: "todo o enriquecimento ilícito decorre de outros crimes; provem-se estes, e provar-se-á a ilicitude do enriquecimento".
O problema está, justamente, a montante, nas dificuldades de prova dos "outros crimes". Mais, pode nem todo o enriquecimento injustificado resultar da pratica de crimes (mas de outras infracções).

Assim, se o "enriquecimento ilícito" nem sempre é, por isso, consequência ou resultado da prática de crimes, teria de ser expressamente criminalizada essa hipótese.
Por outro lado, as dificuldades vitimo-sociológicas da prova dos crimes subjacentes ao enriquecimento é que fizeram as instâncias internacionais, como a ONU, impor a criminalização do enriquecimento ilícito, na Convenção da ONU Contra a Corrupção (de 31-10-2003, em vigor em Portugal), aprovada pela Resolução da AR n.º 47/2007 (DR de 21-9-2007) e que reza assim:


Artigo 20.º
Enriquecimento ilícito

Sem prejuízo da sua Constituição e dos princípios
fundamentais do seu sistema jurídico, cada Estado Parte
deverá considerar a adopção de medidas legislativas e de
outras que se revelem necessárias para classificar como
infracção penal, quando praticado intencionalmente, o
enriquecimento ilícito
, isto é o aumento significativo do
património de um agente público para o qual ele não consegue
apresentar uma justificação razoável face ao seu
rendimento legítimo.
A discussão actual não é, portanto, nem séria nem tempestiva, já que a criminalização do enriquecimento ilícito decorre da obrigação de um instrumento internacional que Portugal subscreveu, ao qual não colocou reservas, e que está em vigor.
E, por fim, face à epígrafe do art. 20.º na versão oficial inglesa ("Illicit enrichment: a significant increase in the assets of a public official that he or she cannot reasonably explain in relation to his or her lawful income") nem sequer se pode argumentar com o subterfígio do proverbial erro de tradução.

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