O aborto é um problema ético. Mas também (ainda) é, e continuará a ser um problema jurídico, político-criminal e, nomeadamente, jurídico-penal (v. artigos 140.º a 142. do Código Penal).
Isto significa que a vida intra-uterina não é indiferente para o Direito (penal). Ela é um bem jurídico-penalmente tutelado pelo Estado.
No Referendo de dia 11, o que estará em jogo é que, nos casos em que a mãe grávida até às 10 semanas (de gravidez) opte por abortar, o poderá fazer livremente, sem qualquer penalização, ao passo que o mesmo bem jurídico - vida de um filho in utero - continuará a merecer protecção, relativamente a terceiros (independentemente de prazos), e relativamente à própria mãe, após as 10 semanas.
A possível despenalização do aborto voluntário e incondicionado até às 10 semanas de gravidez (em estabelecimento de saúde legalmente autorizado) traduz a consagração do sistema de prazos, com toda a sua aleatoriedade e discricionariedade.
Isto é, a mulher que aborte às "dez semanas e um dia de gravidez" continuará a ser punida criminalmente. Bem como os médicos ou outros profissionais ou «curiosos». E continuarão a ser punidos se realizarem a conduta abortiva fora de «estabelecimento legalmente autorizado», mesmo dentro do prazo das 10 semanas, e ainda que disponha de idênticas ou melhores condições que os «estabelecimentos autorizados».
Vão-me desculpar os defensores do «sim», mas algo não bate certo na lógica desta proposta.
Cada vez acho mais que há um grande défice argumentativo no «sim».
Dir-me-ão que o direito é convenção e que há sempre uma margem de aleatoriedade nas opções político-criminais. Mas, numa questão em que se debate a (des)protecção do bem jurídico da vida intra-uterina, essa opção não pode ser matéria eleitoral. Deve depender de critérios de razoabilidade científica (de acordo com o estado actual dos conhecimentos científicos), os quais são claros em afirmar que é perfeitamente arbitrário «ficcionar» (passe o pleonasmo) o momento do início da vida intra-uterina nas 10 semanas de gravidez.
Por outro lado, também julgo que nunca houve vontade política de pôr a funcionar os mecanismos clínicos e logísticos para activar as circunstâncias que excluem a ilicitude da conduta (v. art. 142.º do Cód. Penal). E, se não houve naquelas situações em que, de uma forma relativamente equilibrada, se deixa de punir a conduta abortiva, será que vai passar a haver?
É também verdade que a educação sexual continua a ser um embuste e que o planeamento familiar é deficiente, como deficientes são as estruturas sociais de apoio às jovens mães e sua famílias para que possam ter e criar os filhos. Mesmo num quadro de baixa natalidade, o que é, de facto, um contra-senso.
Por mim, acharia mais justificado que se alargassem os prazos das circunstâncias da exclusão da ilicitude do art. 142.º do Cód. Penal (não punibilidade), do que se aprovasse o sim à despenalização do aborto incondicionado até às 10 semanas.
Partir para a despenalização-liberalização é, por isso, de um utilitarismo atroz, mas não é uma solução que encerre uma integral racionalidade.
E de pouco valem os argumentos do direito comparado e das consequências fatais e sanitárias para as mulheres que abortam. A verdade é que, podem não morrer mais mulheres por práticas abortivas - desiderato que ninguém pode garantir mesmo num cenário de aborto livre - mas que aumenta exponencialmente o número de abortos (registados) nos países em que o liberalizaram é um facto divulgado pelo Eurostat, econtrando-se o Reino Unido a discutir a eventual redução do prazo.
O desvalor ético não tem que aderir ao desvalor jurídico(-penal), designadamente. É assim desde o racionalismo e das «Luzes».
A ética não tem de coincidir com o direito. Mas deixar de o fazer coincidir por um capricho ou por uma opção insustentada (desde logo do ponto de vista científico) parece-me de uma pobreza argumentativa temerária.
Ou - pior ainda -, (apenas) mais um capítulo do capitulacionismo do Estado.
20070207
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