20071201

O «separar das águas»?

O Presidente da República parece não ter acolhido as objecções de eventual inconstitucionalidade do Procurador-Geral da República, quanto à inclusão dos magistrados do Ministério Público na Lei sobre Vínculos e Carreiras da Função Pública.

Ao ter um entendimento diferente sobre a inconstitucionalidade da abrangência dos juízes - e ao não propor a apreciação de tal eventual vício quanto aos procuradores - a conclusão a tirar seria a de que o Ministério Público poderia vir, num futuro mais ou menos próximo, a perder os contornos da sua autonomia e, mesmo, da sua característica de magistratura (conforme ainda dispõe a Constituição).

O equívoco gerado durante anos sobre o estatuto de magistratura do Ministério Público encerra-se numa discussão que tem estado dormente. E arrancou, essencialmente de uma ambiguidade originária que remonta à separação e autonomização das magistraturas, aquando do «corte» com o modelo de MP como magistratura vestibular da judicatura.
Nesse momento, em rigor, não se devia ter perspectivado essa separação como uma oportunidade de ascensão profissional de uns quantos magistrados (alguns deles juízes, na ocasião) aos quadros de topo do MP, mas sim como a fundação de duas magistraturas equiparáveis e, vitualmente, enquadráveis num estatuto e num Conselho de gestão únicos.
O equívoco gerado por essa «falha» veio a ter como resultado um surdo clima de crispação, rivalidade e, por vezes, de soez amesquinhamento, cenário que tinha como hipotético plano de esbatimento o modo de acesso à magistratura, com um curso de formação maioritariamente comum e com opção diferida.
Ora, a recente posição do PR acima enunciada, que coincide (acidentalmente?) com a aprovação de uma nova Lei de Acesso e Formação de magistrados - em que a opção pela magistratura é feita no início -, são elementos perturbadores que permitem concluir que uma mudança de opção política sobre o estatuto do MP pode estar iminente, se não estiver mesmo já em curso.

A questão que se coloca é a saber se não seria, antes, oportuno, debater a permeabilização das magistraturas - tabu cujo entendimento só se pode alcançar sabendo dos projectos de poder pessoal de uns quantos "autarcas" da magistratura - e a constituição de um Conselho único, de resto, de acordo com as exigências que significarão os desafios de um próximo Mapa judiciário e com as próprias atribuições de cada magistratura, modelo de resto partilhado em Itália e em França, sem que se conheçam óbices ou inconvenientes ao seu (bom) funcionamento.

É evidente que tal opção é, tão só, uma opção política que parece estar, em Portugal, a distanciar-se das práticas da Europa: é mais tentador equiparar o Ministério Público a um corpo de funcionários dependentes do poder político do que dotá-lo de uma efectiva autonomia que seja condição da independência do poder judicial.
Isso compreende-se. Sobretudo num Estado com tentações autoritárias.

Por um lado, o poder político terá legitimidade para reconverter o estatuto da magistratura do Ministério Público, o que, no entanto, parece obrigar à alteração da Constituição. E aí, a única nota de objecção será a de saber se tal alteração trará alguma vantagem para a Comunidade, em nome de quem é administrada a Justiça. Não podem ser meros critérios orçamentais ou de gestão de carreira que motivem uma tal modificação de paradigma.

Por outro lado, pretender agora inverter o sentido da equiparação e paralelismo das magistraturas (contrariando toda uma linha afirmada de jurisprudência constitucional), não é, como alguns o pretendem, consumar a «separação das águas».
O Ministério Público é, queiramos ou não, coisa matricialmente diversa da magistratura judicial. O magistrado do MP não deve mimetizar o juiz, não deve ser um seu sucedâneo. Há-de ser alguém com uma função e atribuições material, teleológica e estatutariamente diferente das deste.

As águas estão separadas por natureza. Não compreender isso, é não entender o essencial.

1 comentário:

Justa Causa disse...

Obrigado pelo intervalo de serenidade.