20091024

Deus e saramago ou um debate inconsequente

É muito natural que alguns escritores optem por fazer publicidade bombástica dos seus escritos, mesmo que isso implique a blasfémia ou a heresia, face a valores religiosos. De qualquer forma, o aumento da tolerância religiosa absorve, normalmente, a polémica, e a vida continua.

Que um escritor prémio Nobel venha denegrir e veicular ciclicamente uma leitura literalista da Bíblia (e de outros textos religiosos fundacionais?) é episódio que ameaça converter-se num folhetim de recorte habitual e com contornos pouco edificantes e que pouco acrescentam ao debate. Mas há quem continue a "morder o isco".

Sinceramente, penso que saramago tem todo "o direito à heresia", concebida esta como uma forma de intolerância não violenta, o que se compreende no quadro dos Estados contemporâneos, em que a separação da Igreja e do Estado é um assunto pacífico.
Que saramago aponte os efeitos nocivos da religião, e que dirija as sua críticas a uma hierarquia da Igreja acomodada e conservadora, pouco (pre)ocupada com as necessidades dos desfavorecidos é compreensível, e dessa perspectiva comungam muitos crentes.

O problema é quando a mensagem não é mais do que um truque provocatório e de baixo perfil intelectual.

"Ler" a Bíblia de uma forma imediatista e literalista é um erro básico, que todo o catecúmeno sabe que não deve cometer. A Bíblia não é, de resto, apenas um Livro, é uma Biblioteca, no sentido de lá se encontrarem respostas para as mais diversas interrogações do Homem. Respostas com as quais se pode concordar - e praticar -, ou não. Sem que isso nos dê o direito à infâmia ou à ignomínia, como parece,mais uma vez, fazer saramago. Este nunca repudiou os "gulags" ou as purgas de estaline, nunca se lhe ouviu uma palavra crítica para com os sistemas do Leste, com todo o seu cortejo de opressão e obscurantismo dos povos, numa época histórica em que aqueles já coexistiam com sistemas políticos democráticos e livres.
Mas compraz-se em exautorar os efeitos nefastos de interpretações da Bíblia historicamente situadas em períodos de generalizado obscurantismo.
Certo, hoje ninguém ousa defender as cruzadas ou a inquisição. Vituperar hoje estes feitos históricos, soa a algo de tão artificial como elementar.

No entanto, é legítimo questionarmo-nos: estaríamos dispostos a "apagar" as cruzadas e a inquisição da História, prescindindo da Arte, da Música e da Cultura de inspiração cristã?

A resposta já será, seguramente, mais resoluta se a opção fosse entre "apagar" o estalinismo e o maoismo, abdicando de Marx.

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