20090107

O juiz de instrução em França

O juiz de instrução era um símbolo do sistema processual penal francês. Simultaneamente encarregado do inquérito, detinha poderes coercitivos no âmbito de medidas coercivas e de obtenção de prova (designadamente na determinação de uma instituição processual que, se existisse em Portugal, tinha caído o Carmo e a Trindade: a garde à vue, em que se permite a detenção de pessoas, que podem nem sequer ser suspeitas, com o mero fim de, directa ou indirectamente, obter provas).
Para equilibrar este cenário, em 2000 instituiu-se o Juiz de liberdade e detenção (JLD), que decidia da necessidade e adequação da prisão preventiva, um enxerto, um arremedo processual, ante os muitos problemas e ambiguidades que o sistema processual potenciava.
O procurador (parquet), promovia diligências que não tivessem já sido realizadas, deduzia a acusação e pouco mais.

Pois bem, Sarkozy e a sua ministra Rachida Dati, propõem, de uma penada, a supressão do juiz de liberdade e detenção, e a redução da intervenção do juiz de instrução; o inquérito seria conduzido pelo procurador e o juiz de instrução interviria em casos comuns de decisão sobre liberdade de pessoas; nos casos mais melindrosos, a decisão sobre a liberdade ficará a cargo de um juiz qualificado, após «audiência colegial pública» (seja lá o que isso for).

Esta proposta demonstra, em definitivo, a não estabilização dos sistemas processuais penais, uma questão que concita cada vez mais apreensões e preocupações da população e dos dirigentes políticos. Está por saber se pelas melhores razões. Os casos Outreau e Vittorio de Filippis, mais recentemente, fizeram retomar uma questão colocada desde há vinte anos, altura, curiosamente, em que o nosso actual sistema processual penal foi introduzido e exibido como um modelo a seguir.

É que os receios e o cepticismo decorrentes de uma tal proposta, fazem temer a governamentalização do Ministério Público, que em França, como na maioria dos Países da Europa, não tem autonomia interna face ao poder político. Daí a justificação de tais receios. O que, por outro lado, sublinha a necessidade de um Ministério Público independente e insensível a controlos externos do governo ou de outro órgão político, e, por outro, reforça a correcção da ideia de uma estrutura fundamentalmente acusatória do processo penal, em que só a autonomia do Ministério Público potenciará a independência dos juízes.
Aproveitar a ocasião para reduzir o papel do juiz de instrução, substituindo-o por um Ministério Público domesticado ou controlado, trata-se de um embuste e é uma mistificação que importa denunciar.

Por isso, as organizações corporativas (sindicais e outras) da Justiça exprimem o seu desacordo, apesar de uma comissão de revisão do processo penal propor aquela medida.

A questão é importante também para os outros Países europeus em que se reflecte sobre o futuro do processo penal, oscilando entre um "processo penal do inimigo" e um processo adversarial puro

Lembremos que já em 1990, embora sem recomendar a ruptura total entre MP e o Executivo, o Relatório da Comissão M.Delmas-Marty, concluíra que:
«Ainsi la réforme proposée conduit-elle à l’institution d’un ministère public « nouveau », nouveau sous un double aspect :
- parce qu’il lui est attribué de nouvelles fonctions ;
- parce que cet accroissement de ses fonctions rend d’autant plus nécessaires de nouvelles garanties statutaires
».

Por isso, a questão reacende-se, num cenário de turbulência social e económica. Veremos onde nos conduz.

1 comentário:

Justa Causa disse...

Ena pá! Com os habituais cinquenta anos de atraso a França vai aderir ao processo contraditório comum na generalidade do mundo ocidental. Talvez seja uma boa notícia.