20080402

Estado-Providência ou infantilização dos cidadãos?

A propósito da morte de uma menina raptada em Espanha (Mari Luz Cortez), lá (como cá aconteceria) não tardaram em "pedir a cabeça de um responsável" pelo «erro judicial» que terá consistido na não prolação de uma decisão pela Audiência de Sevilha, cujo juiz tardou, durante três anos, a despachar um recurso de uma sentença o de condenação do dito suspeito. O que implicou que tivesse sido posto em liberdade. Este folhetim pode ler-se aqui.

O "mata-esfolismo" continua neste editorial do habitualmente contido ElPais, onde é eloquente a condenação mediática das instituições de gestão do poder judicial, culminando com a seguinte tirada:

"Alguien del Consejo tendría que responder de ese incomprensible resultado, que demuestra que además de los jueces fallaron los mecanismos de control. Pero no hay visos de asunción de responsabilidad institucional alguna por parte de un Consejo que en su anómalo mandato -casi 17 meses en funciones- ha mostrado tanto interés por el matrimonio homosexual o por el Estatuto catalán y tan poco por el buen funcionamiento de la justicia".

A verdade é que, mesmo que o suspeito tivesse cumprido imediatamente a pena aplicada (2 anos e seis meses de prisão), estaria em liberdade no dia em que a menina foi raptada. Quer dizer, poderia ter acontecido exactamente o que aconteceu.

O que levanta uma outra bem interessante questão. Se ninguém duvida das «responsabilidades do poder judicial», porque não exigir uma responsabilidade político-legislativa pela não consagração de uma moldura penal mais grave para o crime de abuso de menores (pelo qual o suspeito tinha sido condenado). Também aí, se a pena fosse (p. ex.) de 20 anos e estivesse a ser cumprida, não teria ocorrido o crime.

A questão verdadeira - e, por isso, esquecida - é esta: é possível às instituições do Estado garantirem a segurança absoluta de todos os cidadãos? Há nexo de causalidade entre uma hipotética demora de uma decisão judicial e um hipotético crime cometido por alguém que haja beneficiado dessa falha? É possível a responsabilidade funcional - e é nessa que estamos a falar - assentar em juízos de prognose póstuma?

Se a resposta for afirmativa, então poderemos sempre demandar o Estado por qualquer acidente de viação, por presumida negligência dos seus agentes que atribuíram um título de condução ao condutor responsável, e por aí adiante...
O Estado - o tal Estado que deixou de ser «Estado -providência» - passará a ter lugar cativo nos tribunais. Em benefício de todos, claro. Até à bancarrota total.

P.S.: a espiral do paroxismo continua aqui.

2 comentários:

Justa Causa disse...

Tecnicamente a questão continua a ser a mesma que ocorreu muitas vezes durante a discussão das alterações às leis penais, em Setembro passado (ainda alguém se lembrará que houve uma discussão?), a confusão ente penas, medidas de coacção e medidas de segurança.

Justa Causa disse...

A questão que levantas é muito apropriada face à revisão da lei sobre a responsabilidade civil extra-contratual do Estado.
Uma das razões que levou o Presidente da República a vetá-la foi o elevado custo que iria impor aos cidadãos pagadores de impostos.
Passou-se de uma visão "Zanobinista" do Direito Administrativo para uma visão civilista cada vez mais pura.
Deve haver algo entre o 8 e o 80.
Uma sociedade formatada pelo liberalismo (hoje chama-se neo-liberalismo) reconhece o papel do Estado como entidade reguladora, procura estabelecer os limites da sua actuação e os meios de defesa os cidadãos contra a prepotência (o Código do Processo Penal é um desses meios, por exemplo) mas não equipara o Estado à providência divina.
Se a criança estiver a brincar na linha do comboio e for atropelada a culpa não é da REFER.
Claro que este exemplo não tem a haver com o caso da Mariluz. Neste a culpa não é do Estado, nem dos pais, é do criminoso.