20071018

Jumah

Jumah, foste o meu primeiro Mestre.
Sábio e senhor de uma imprevista elegância.
Muçulmano, macua e observador de gerações de homens de todos os continentes que demandavam a cidadezinha da Companhia dos Algodões e da Nossa Senhora de Fátima.
Cofió de crochet cobrindo a digna cabeça ossuda, debruada com a rala barba branca.
Sobreviveras, provavelmente, a uma novela colonial em que cipaios de bivaque turco carmim atormentavam os conterrâneos, em troca de infames favores dos poderosos.

Jumah só lia e escrevia árabe.
Recitava os Hadiths e a Sunna, como ladaínha dos crentes, após o almoço, nunca curando de aprender a escrever e a ler a língua do poder (soberano desprezo pela utilitária capacidade que poderia ter-lhe aberto outras vi(d)as).
Mas Jumah conformava-se com existir e «ensinar a vida» a todos quantos quisessem ouvi-lo, negros, novos, velhos, e eu - talvez o único miúdo branco que o escutava, fascinado - sentado nas traseiras da Zuid Afrikaans, fumando havanas, uns atrás de outros.

Lá estavas sempre, com o Roque e o Ismaíl Sabour, meu mainato, e, por vezes, aparecia o teu sobrinho, o grande e ocupado artista Scha' al.
Tinhas-te auto-contaminado com o apelido dos teus amos, que era, afinal, o meu.

Não. Não me contaste as Mil e Uma Noites, nem me explicaste álgebra. Não sabias os graus dos adjectivos nem ouviras falar do modelo coperniciano.
Mas, Jumah, ensinaste-me mais que todas as escolas me poderiam ter ensinado.
Aprendi contigo que Sócrates, afinal, pode estar acocorado ao descer da escada, no terreiro do armazém.
Aprendi contigo a perfídia dos bons e a fealdade dos belos. Que a totalidade da Fé não está nos templos.
Aprendi ainda o cantar dos pássaros, o sabor frutos da nossa terra, as histórias de homens em estradas poeirentas e carregando azagaias de caça.
Aprendi as cores do Mossuril e da Cabaceira, a brisa nos palmares.
Aprendi o horizonte das ideias grandes dos homens e soube qual o sítio em que queria muito ser árvore, frente à fortaleza da Ilha, para ver os barcos dos pescadores, de velas brancas a reflectir na transparência verde do nosso Índico, toda a encruzilhada das nossas crenças e raças.

Como Muh´na que eras, todos te respeitavam, mesmos os patrões burgessos e frívolos.
E como lamento não te ter escutado mais, e mais, e me ter embriagado com tudo o que não me ensinaste. Que pena não ter aprendido, como querias, a escrita do teu Profeta.

Ah, Jumah, se eu pudesse hoje abraçar-te o corpo austero e escasso, meu Mestre e Amigo!
Sabes? Tornaste-te lenda em mim.
Será isto a imortalidade?

2 comentários:

Justa Causa disse...

Gostei.

Anónimo disse...

Sim.Gostei da beleza e da força das palavras. Da improvável certeza de, também nós,amarmos - através delas - "JUMAH".Todos os "Jumah".
Arquimedes